sábado, 13 de janeiro de 2018

Experiências inusitadas, percepções ampliadas, coração inquieto (Sobre passar 15 horas na fila para recadastramento biométrico)

                                                                        
   
Tudo poderia ter sido diferente se eu não fosse uma pessoa tão exigente comigo mesma... Ou, por outro lado, se eu fosse mais atenta aos prazos (deixei para me preocupar com a biometria já em novembro)... Perdi o agendamento que havia feito por estar viajando a trabalho e, não querendo correr o risco de ter o título cancelado, encarei o desafio das super filas, mesmo com alguns amigos dizendo que era maluquice e que haveria condições de fazer depois do dia 31 de janeiro, data colocada como limite.
Preocupada comigo devido aos problemas de saúde que me acompanham, minha filha se propôs a madrugar na fila para que eu chegasse um pouco mais tarde. Assim fez! Às 5:30h da madrugada lá estava ela tentando uma senha para mim. Ficou na fila de espera, visto que as primeiras senhas haviam sido entregues às pessoas que não conseguiram atendimento no dia anterior. Cheguei às 8:00h, esbaforida,  pois chamaram pessoas da fila de espera onde ela estava e a possibilidade de perder a vez era algo inimaginável para mim.  Saí de casa preparada para a empreitada que via nas reportagens da TV: filas imensas sob sol e chuva. Eu sabia que dificilmente daria conta daquilo, mas estava disposta a tentar.
Estava preparada para algo tão ruim que fui surpreendida positivamente ao ver que no lugar do sol e da chuva, havia cadeiras arrumadinhas no saguão de entrada da Assembleia Legislativa. Mais do que isso: havia várias térmicas de café e garrafas de água mineral à disposição das pessoas. Confesso que fiquei positivamente surpresa. Por pior que fosse a perspectiva de espera, esse cuidado com as pessoas por parte dos funcionários daquele lugar (infelizmente anormal nas instituições públicas de nosso país) me chamou atenção. Talvez tenha me ajudado a ter as forças para continuar ali, mesmo passadas três horas e ter recebido a notícia de que somente 28 pessoas haviam sido atendidas (14 da fila normal e 14 prioridades).
Era quase meio-dia quando um segurança chegou no lugar onde estávamos, informando-nos que anotariam nossos nomes e números de RG para que fôssemos prioridade no dia seguinte, visto que não poderiam mais garantir atendimento. Quem quisesse arriscar, arriscasse, mas seria sem garantias. O que faz uma pessoa nessa circunstância? Com a manhã de trabalho já perdida, arrisca a tarde, mesmo com toda lentidão do sistema? Nessas horas, as dúvidas se multiplicam, as interrogações parecem pulsar na cabeça e aquela culpa por ter deixado o recadastramento para os últimos meses fica ali atormentando. Sem saber que decisão tomar, fui deixando o tempo passar. Nesse tempo, algumas pessoas desistiram, outras persistiram. E eu ali, pagando pra ver até onde minhas forças iriam. Durante toda manhã, minha filha estava ali, fiel escudeira a me dar força. Comprou lanchinho na lanchonete, cuidando de mim. Privilégio, o meu! Na hora do almoço precisou sair para resolver uns compromissos. Logo depois que ela saiu, o mesmo segurança aproximou-se novamente do grupo dos persistentes e falou: “garanto a vocês que farei o possível para que consigam ser atendidos”. Uma das pessoas que estava na fila brincou dizendo: “é bom pra gente e menos trabalho pra você, né?”. Naquela hora o rapaz parou e, com os olhos lacrimejando, falou para nós: “Para mim não muda nada, o trabalho é o mesmo. Vou fazer de tudo porque me coloco no lugar de vocês e fico muito feliz quando conseguimos fazer com que o esforço e o desgaste de vocês seja recompensado.” Os olhos marejados e a verdade das palavras daquele segurança me deram duas certezas:
1.    Eu deveria ficar;
2.    Eu aprenderia muito com a experiência daquele dia
Decidida a ficar, logo depois fomos chamados a fazer nosso cadastro para receber nossas senhas. Minha senha? 115. Às 13:00h, as senhas que estavam sendo atendidas eram a 28 para fila normal e prioridade. A primeira pergunta que eu fiz ao segurança da nova sala e à recepcionista foi: “vocês garantem que seremos todos atendidos?” Quando a resposta veio positivamente, senti aquela alegria por ter tomado a decisão certa de ficar e arriscar. Eu não tinha ideia do que ainda viria pela frente,  mas alguma coisa me dizia que eu não estava ali por acaso.
Não adiantava ficar olhando para o relógio. Como pessoa de Ciências Humanas, troquei a olhadela frequente no celular pelo olhar, escuta e observação do que estava acontecendo a minha volta. E saí ganhando! Tenho certeza de que, por mais que o dia tenha sido pesado e muito cansativo, foi também uma experiência valiosa. Algo genético, herdado de minha avó e de minha mãe, não me deixou nem sequer abrir o livro que eu tinha nas mãos. Logo eu já estava conversando com o povo, dando risada e aprendendo com a sabedoria de cada um.
As conversas começaram sobre os mais diferentes assuntos. As redes de relacionamento foram se formando. Um contava uma história e os outros comentavam. Alguém contava uma piada e todos riam. Uma pessoa se aborrecia e quem estava em volta intervia. Um recorte da nossa sociedade ali, naquela fila gigante, naquela espera sem fim...
Sentadas naquele corredorzão, pessoas de diferentes culturas, classes sociais, profissões, idades e expectativas. Sentadas naquele corredorzão, pessoas completamente diferentes, igualadas, cada vez mais, no cansaço, na fome, na indignação. Se por um lado todos nós sabíamos que o recadastramento estava aberto por mais de 10 meses e que deixamos para os últimos meses (daí nossa parcela de responsabilidade em ter que enfrentar fila), por outro lado, nada justificava – em pleno século XXI – com a tecnologia que temos, pessoas passarem horas e horas para fazerem um processo simples de biometria.Cá entre nós, mais um exemplo de desrespeito do governo em relação ao povo. Sacrifício desnecessário tanto para o povo quanto para os profissionais que vem trabalhando horas a fio, exaustivamente.
 Os diálogos transitavam entre os papos sobre o cotidiano e a indignação. De um modo geral, não havia revolta. Ainda que todos estivessem aborrecidos com a situação, havia um tom de respeito -por parte dos funcionários que nos atendiam - que trazia certa acolhida: os garrafões de água e as térmicas de café sendo trocados periodicamente, banheiros sempre limpos, funcionários tratando as pessoas com educação e respeito. Até livros recebemos, publicações patrocinadas pela ALBA que um funcionário distribuiu para nos ajudar a passar um tempo com a leitura de autores baianos.
Olhar para aquelas pessoas dava um nó em meu peito. Ali de meu lado, minha filha indo e vindo, me trazendo lanche, fazendo companhia. As pessoas mais próximas comentavam comigo como era bom ter filhos que cuidavam dos pais. A presença dela fez com que um dos temas das conversas fosse a importância da família. Enquanto as pessoas falavam de seus pais, de seus filhos, suas faces se transformavam, os olhos brilhavam. Isso servia como combustível. Interessante foi pensar que despertamos coisas boas nas pessoas com nossas atitudes: a presença de minha filha ali fez com que cada um pudesse falar um pouco de sua família e, para quem acha que família não é mais um “valor”, pude constatar que é sim !
De vez em quando, um evento movimentava o ambiente e aquele amontoado de pessoas  ia se transformando num grupo, por mais estranho que isso possa parecer a primeira vista. Era só chegar um funcionário com crachá no peito acompanhado por uma ou duas pessoas com cara de banho tomado e estômago cheio que logo dois ou três se levantavam de seus lugares e seguiam determinados em direção a porta da sala onde o recadastramento estava acontecendo. Auto-entitularam-se : “fiscais das senhas”.  Num primeiro olhar, era engraçado ver a cena se repetir. Um olhar mais apurado via o quanto aquela cena era carregada de significado. A atuação dos “representantes” foi imediatamente validada por todos e, quando um estranho se aproximava, alguém gritava de um canto: “fiscais, venham pra porta”. E eles vinham. Confesso que, durante a tarde, não vi ninguém conseguir entrar. A demora no andamento da chamada das senhas fez muita gente dizer que estavam entrando por outra porta. Não posso dizer o que não vi. O que vi foi, mais de uma vez, alguém querer furar fila e não conseguir, “barrado” pela força do povo junto. Vi também, mais de uma vez, o segurança perguntar a quem era o primeiro da fila a que horas tinha chegado e, ao ouvir dessa pessoa que ela havia chegado às 4:00h da madrugada, o próprio funcionário da assembleia e a pessoa desistirem de entrar, por respeito ao sacrifício dos que ali estavam. Assim, as horas foram se passando. Uma professora recebeu o apelido de “delegada” por ficar lembrando o direito dos que estavam ali. Um rapaz de boné desconfiava até da sombra e, vez por outra, abria um pedacinho da porta para ver como as coisas estavam se passado dentro da sala da biometria. Ao sair, falava alto: “tudo certo, minha gente”. Ao mesmo tempo que eu ria, eu me emocionava.
Quando a noite chegou trouxe com ela os rostos abatidos pelo cansaço, a fome tirando a graça e a falta de paciência e tolerância. O sistema melhorou e as pessoas começaram a ser chamadas mais rapidamente, fazendo o contraponto da baixa de energia. Quando o limite parecia chegar, os ânimos se reavivavam, um tema novo na conversa, uma criança correndo pelo corredor (sim, elas estavam lá desde a madrugada também, já que algumas mães não tinham com quem deixa-las). Quanto mais rápido as senhas eram chamadas, uma vida nova parecia ganhar lugar. Os ponteiros do relógio também pareciam rodar mais rápido... 20:00h, 21:00h.... Tudo caminhava bem até que, ao chamar a senha 102, aparece uma pessoa de banho tomado, arrumada, cheirosa,maquiada até. Parecia que uma bomba atômica havia caído sobre aqueles corpos suados, cansados, famintos. Todos se levantaram sentindo-se traídos e feridos no mais profundo de suas almas. O segurança repetia que a pessoa estava com a senha e o povo gritava que tinham clonado uma senha, que aquilo era privilégio. Não houve xingamentos nem violência, mas muita revolta. Houve explicações por parte de funcionários da AL e, ao que tudo indica, algum funcionário pegou a senha cedinho, guardou e, quando estava mais perto do horário de atendimento, ligou, avisando as pessoas para irem. Elas foram. Muito provavelmente sem nenhuma noção do que se passava com as pessoas que estavam naquele corredor, muitas delas desde às 5:00h da madrugada. Diante daquela revolta e do que eu senti estando ali – também me senti desrespeitada – parei para pensar que qualquer um de nós poderia estar na situação daquelas pessoas. Quem não já usou de conhecimento para facilitar um serviço, sem a mínima noção do mal que estava fazendo – indiretamente – a tantas pessoas? Quantas vezes já ouvimos (e já perguntamos): “alguém conhece alguém no...... ???” Quantas vezes, por causa desses conhecimentos, já conseguimos marcar uma consulta médica ou um exame bem antes de outros, já tivemos um problema no banco resolvido mais rápido e por ai vai... “Quem não tiver pecado, que atire a primeira pedra”. Pois, naquele momento, eu senti vergonha de fazer parte de um grupo de privilegiados que têm acesso a praticamente todas as coisas de uma forma muito mais fácil.
Eu poderia ter saído na hora do almoço e só voltado perto da hora do atendimento também. Desde cedo, não tive coragem. Não estaria fazendo nada de “errado”, mas não tive coragem de me eximir daquele sacrifício. Não sei explicar, mas foi assim. Sei que muita gente deve estar me chamando de doida ou de idiota, mas minha consciência me fez ficar e sentir na pele o que eu senti. A partir dessa experiência, comecei a rever minhas atitudes, por mais que elas pareçam ser “normais.” A partir de agora, terei mais cuidado ainda com as pessoas. A partir de agora, pensarei mais ainda na diferença entre direito e privilégio, pois direito não tem distinção. A partir de agora, mais do que sempre fiz, lutarei – dentro de minha limitações - pela qualidade de vida dessas pessoas de nosso país, obrigadas a se submeter a situações desumanas, como passar 16 horas em uma fila para fazer um recadastramento biométrico.
A culpa não é só do governo, não. A culpa dessa situação é de todos nós que nos omitimos diante de situações como essa, que fechamos nossos olhos para tantas coisas e não nos preocupamos porque elas não nos atingem. Imagino o que sejam as filas dos hospitais públicos... Aliás, nem sou capaz de imaginar. O recadastramento é uma vez só. As filas do dia a dia se repetem. A dificuldade para se ter o que é básico se repete, assim como se repetem os privilégios.
Quando a pessoa da senha 102 saiu da sala, acompanhada por um funcionário, foi aplaudida fortemente, aos gritos de “muito bem”. Senti vergonha por ela. Não sei se ela tinha dimensão do que significava ela ter entrado ali, bem alimentada, descansada e perfumada. Imagino que não.
Saí de lá, no carro da minha filha, já tinha dado 22:00h. As pessoas que ainda esperavam atendimento, combinavam umas com as outras de saírem juntas pois, naquele horário, não tinha mais ônibus que passava por perto e teriam que caminhar até a avenida Paralela para pegar o ônibus que as levasse a alguma outra estação para que conseguissem chegar em casa. Eu até ofereci carona para a moça que estava perto de mim, mas ela não aceitou, já que um rapaz havia se disponibilizado a caminhar com ela até o ponto. Junto comigo levei cada história, cada reclamação e cada sorriso.
Ao deitar na cama, depois de tomar meu banho, fiquei pensando naquelas pessoas todas... Onde estariam? Teriam conseguido o ônibus para casa? (depois de meia-noite os ônibus diminuem bastante) Teriam chegado a salvo ? Nossa cidade já está perigosa de dia, quanto mais na madrugada...
Fui dormir triste e incomodada. Profundamente incomodada. Coração inquieto. Indignada. Assustada com nossa apatia. Nós, que não temos essas filas como parte de nossas rotinas, continuaremos de olhos fechados para essa realidade? Nós continuaremos nos beneficiando de amizades que pegam a senha por nós, marcam a consulta para nós?  E a maioria da populaçãopermanecerá nas filas para fazer biometria, para agendar uma consulta, para matricular seus filhos...


“Que tenhamos coragem de fazer diferente
  onde tudo é igual,
  Que sejamos agentes, construindo a mudança

            bem no mundo real.”