Tudo
poderia ter sido diferente se eu não fosse uma pessoa tão exigente comigo
mesma... Ou, por outro lado, se eu fosse mais atenta aos prazos (deixei para me
preocupar com a biometria já em novembro)... Perdi o agendamento que havia
feito por estar viajando a trabalho e, não querendo correr o risco de ter o título
cancelado, encarei o desafio das super
filas, mesmo com alguns amigos dizendo que era maluquice e que haveria
condições de fazer depois do dia 31 de janeiro, data colocada como limite.
Preocupada
comigo devido aos problemas de saúde que me acompanham, minha filha se propôs a
madrugar na fila para que eu chegasse um pouco mais tarde. Assim fez! Às 5:30h
da madrugada lá estava ela tentando uma senha para mim. Ficou na fila de
espera, visto que as primeiras senhas haviam sido entregues às pessoas que não
conseguiram atendimento no dia anterior. Cheguei às 8:00h, esbaforida, pois chamaram pessoas da fila de espera onde
ela estava e a possibilidade de perder a vez era algo inimaginável para mim. Saí de casa preparada para a empreitada que
via nas reportagens da TV: filas imensas sob sol e chuva. Eu sabia que
dificilmente daria conta daquilo, mas estava disposta a tentar.
Estava
preparada para algo tão ruim que fui surpreendida positivamente ao ver que no
lugar do sol e da chuva, havia cadeiras arrumadinhas no saguão de entrada da
Assembleia Legislativa. Mais do que isso: havia várias térmicas de café e
garrafas de água mineral à disposição das pessoas. Confesso que fiquei
positivamente surpresa. Por pior que fosse a perspectiva de espera, esse
cuidado com as pessoas por parte dos funcionários daquele lugar (infelizmente
anormal nas instituições públicas de nosso país) me chamou atenção. Talvez
tenha me ajudado a ter as forças para continuar ali, mesmo passadas três horas
e ter recebido a notícia de que somente 28 pessoas haviam sido atendidas (14 da
fila normal e 14 prioridades).
Era
quase meio-dia quando um segurança chegou no lugar onde estávamos,
informando-nos que anotariam nossos nomes e números de RG para que fôssemos
prioridade no dia seguinte, visto que não poderiam mais garantir atendimento.
Quem quisesse arriscar, arriscasse, mas seria sem garantias. O que faz uma
pessoa nessa circunstância? Com a manhã de trabalho já perdida, arrisca a
tarde, mesmo com toda lentidão do sistema? Nessas horas, as dúvidas se
multiplicam, as interrogações parecem pulsar na cabeça e aquela culpa por ter
deixado o recadastramento para os últimos meses fica ali atormentando. Sem
saber que decisão tomar, fui deixando o tempo passar. Nesse tempo, algumas
pessoas desistiram, outras persistiram. E eu ali, pagando pra ver até onde
minhas forças iriam. Durante toda manhã, minha filha estava ali, fiel escudeira
a me dar força. Comprou lanchinho na lanchonete, cuidando de mim. Privilégio, o
meu! Na hora do almoço precisou sair para resolver uns compromissos. Logo
depois que ela saiu, o mesmo segurança aproximou-se novamente do grupo dos
persistentes e falou: “garanto a vocês que farei o possível para que consigam
ser atendidos”. Uma das pessoas que estava na fila brincou dizendo: “é bom pra
gente e menos trabalho pra você, né?”. Naquela hora o rapaz parou e, com os
olhos lacrimejando, falou para nós: “Para mim não muda nada, o trabalho é o
mesmo. Vou fazer de tudo porque me coloco no lugar de vocês e fico muito feliz
quando conseguimos fazer com que o esforço e o desgaste de vocês seja
recompensado.” Os olhos marejados e a verdade das palavras daquele segurança me
deram duas certezas:
1. Eu deveria ficar;
2. Eu aprenderia muito com a
experiência daquele dia
Decidida
a ficar, logo depois fomos chamados a fazer nosso cadastro para receber nossas
senhas. Minha senha? 115. Às 13:00h, as senhas que estavam sendo atendidas eram
a 28 para fila normal e prioridade. A primeira pergunta que eu fiz ao segurança
da nova sala e à recepcionista foi: “vocês garantem que seremos todos
atendidos?” Quando a resposta veio positivamente, senti aquela alegria por ter
tomado a decisão certa de ficar e arriscar. Eu não tinha ideia do que ainda
viria pela frente, mas alguma coisa me
dizia que eu não estava ali por acaso.
Não
adiantava ficar olhando para o relógio. Como pessoa de Ciências Humanas, troquei
a olhadela frequente no celular pelo olhar, escuta e observação do que estava
acontecendo a minha volta. E saí ganhando! Tenho certeza de que, por mais que o
dia tenha sido pesado e muito cansativo, foi também uma experiência valiosa. Algo
genético, herdado de minha avó e de minha mãe, não me deixou nem sequer abrir o
livro que eu tinha nas mãos. Logo eu já estava conversando com o povo, dando
risada e aprendendo com a sabedoria de cada um.
As
conversas começaram sobre os mais diferentes assuntos. As redes de
relacionamento foram se formando. Um contava uma história e os outros
comentavam. Alguém contava uma piada e todos riam. Uma pessoa se aborrecia e
quem estava em volta intervia. Um recorte da nossa sociedade ali, naquela fila
gigante, naquela espera sem fim...
Sentadas
naquele corredorzão, pessoas de diferentes culturas, classes sociais,
profissões, idades e expectativas. Sentadas naquele corredorzão, pessoas
completamente diferentes, igualadas, cada vez mais, no cansaço, na fome, na
indignação. Se por um lado todos nós sabíamos que o recadastramento estava
aberto por mais de 10 meses e que deixamos para os últimos meses (daí nossa
parcela de responsabilidade em ter que enfrentar fila), por outro lado, nada
justificava – em pleno século XXI – com a tecnologia que temos, pessoas
passarem horas e horas para fazerem um processo simples de biometria.Cá entre
nós, mais um exemplo de desrespeito do governo em relação ao povo. Sacrifício
desnecessário tanto para o povo quanto para os profissionais que vem
trabalhando horas a fio, exaustivamente.
Os diálogos transitavam entre os papos sobre o
cotidiano e a indignação. De um modo geral, não havia revolta. Ainda que todos
estivessem aborrecidos com a situação, havia um tom de respeito -por parte dos
funcionários que nos atendiam - que trazia certa acolhida: os garrafões de água
e as térmicas de café sendo trocados periodicamente, banheiros sempre limpos,
funcionários tratando as pessoas com educação e respeito. Até livros recebemos,
publicações patrocinadas pela ALBA que um funcionário distribuiu para nos
ajudar a passar um tempo com a leitura de autores baianos.
Olhar
para aquelas pessoas dava um nó em meu peito. Ali de meu lado, minha filha indo
e vindo, me trazendo lanche, fazendo companhia. As pessoas mais próximas
comentavam comigo como era bom ter filhos que cuidavam dos pais. A presença
dela fez com que um dos temas das conversas fosse a importância da família.
Enquanto as pessoas falavam de seus pais, de seus filhos, suas faces se
transformavam, os olhos brilhavam. Isso servia como combustível. Interessante
foi pensar que despertamos coisas boas nas pessoas com nossas atitudes: a
presença de minha filha ali fez com que cada um pudesse falar um pouco de sua
família e, para quem acha que família não é mais um “valor”, pude constatar que
é sim !
De
vez em quando, um evento movimentava o ambiente e aquele amontoado de
pessoas ia se transformando num grupo,
por mais estranho que isso possa parecer a primeira vista. Era só chegar um
funcionário com crachá no peito acompanhado por uma ou duas pessoas com cara de
banho tomado e estômago cheio que logo dois ou três se levantavam de seus
lugares e seguiam determinados em direção a porta da sala onde o
recadastramento estava acontecendo. Auto-entitularam-se : “fiscais das
senhas”. Num primeiro olhar, era
engraçado ver a cena se repetir. Um olhar mais apurado via o quanto aquela cena
era carregada de significado. A atuação dos “representantes” foi imediatamente
validada por todos e, quando um estranho se aproximava, alguém gritava de um
canto: “fiscais, venham pra porta”. E eles vinham. Confesso que, durante a
tarde, não vi ninguém conseguir entrar. A demora no andamento da chamada das
senhas fez muita gente dizer que estavam entrando por outra porta. Não posso
dizer o que não vi. O que vi foi, mais de uma vez, alguém querer furar fila e
não conseguir, “barrado” pela força do povo junto. Vi também, mais de uma vez,
o segurança perguntar a quem era o primeiro da fila a que horas tinha chegado
e, ao ouvir dessa pessoa que ela havia chegado às 4:00h da madrugada, o próprio
funcionário da assembleia e a pessoa desistirem de entrar, por respeito ao sacrifício
dos que ali estavam. Assim, as horas foram se passando. Uma professora recebeu
o apelido de “delegada” por ficar lembrando o direito dos que estavam ali. Um
rapaz de boné desconfiava até da sombra e, vez por outra, abria um pedacinho da
porta para ver como as coisas estavam se passado dentro da sala da biometria.
Ao sair, falava alto: “tudo certo, minha gente”. Ao mesmo tempo que eu ria, eu
me emocionava.
Quando
a noite chegou trouxe com ela os rostos abatidos pelo cansaço, a fome tirando a
graça e a falta de paciência e tolerância. O sistema melhorou e as pessoas
começaram a ser chamadas mais rapidamente, fazendo o contraponto da baixa de
energia. Quando o limite parecia chegar, os ânimos se reavivavam, um tema novo
na conversa, uma criança correndo pelo corredor (sim, elas estavam lá desde a
madrugada também, já que algumas mães não tinham com quem deixa-las). Quanto
mais rápido as senhas eram chamadas, uma vida nova parecia ganhar lugar. Os
ponteiros do relógio também pareciam rodar mais rápido... 20:00h, 21:00h....
Tudo caminhava bem até que, ao chamar a senha 102, aparece uma pessoa de banho
tomado, arrumada, cheirosa,maquiada até. Parecia que uma bomba atômica havia
caído sobre aqueles corpos suados, cansados, famintos. Todos se levantaram
sentindo-se traídos e feridos no mais profundo de suas almas. O segurança
repetia que a pessoa estava com a senha e o povo gritava que tinham clonado uma
senha, que aquilo era privilégio. Não houve xingamentos nem violência, mas
muita revolta. Houve explicações por parte de funcionários da AL e, ao que tudo
indica, algum funcionário pegou a senha cedinho, guardou e, quando estava mais
perto do horário de atendimento, ligou, avisando as pessoas para irem. Elas
foram. Muito provavelmente sem nenhuma noção do que se passava com as pessoas que
estavam naquele corredor, muitas delas desde às 5:00h da madrugada. Diante
daquela revolta e do que eu senti estando ali – também me senti desrespeitada –
parei para pensar que qualquer um de nós poderia estar na situação daquelas
pessoas. Quem não já usou de conhecimento para facilitar um serviço, sem a
mínima noção do mal que estava fazendo – indiretamente – a tantas pessoas?
Quantas vezes já ouvimos (e já perguntamos): “alguém conhece alguém no......
???” Quantas vezes, por causa desses conhecimentos, já conseguimos marcar uma
consulta médica ou um exame bem antes de outros, já tivemos um problema no
banco resolvido mais rápido e por ai vai... “Quem não tiver pecado, que atire a
primeira pedra”. Pois, naquele momento, eu senti vergonha de fazer parte de um
grupo de privilegiados que têm acesso a praticamente todas as coisas de uma forma
muito mais fácil.
Eu
poderia ter saído na hora do almoço e só voltado perto da hora do atendimento
também. Desde cedo, não tive coragem. Não estaria fazendo nada de “errado”, mas
não tive coragem de me eximir daquele sacrifício. Não sei explicar, mas foi
assim. Sei que muita gente deve estar me chamando de doida ou de idiota, mas minha
consciência me fez ficar e sentir na pele o que eu senti. A partir dessa
experiência, comecei a rever minhas atitudes, por mais que elas pareçam ser “normais.”
A partir de agora, terei mais cuidado ainda com as pessoas. A partir de agora,
pensarei mais ainda na diferença entre direito e privilégio, pois direito não
tem distinção. A partir de agora, mais do que sempre fiz, lutarei – dentro de
minha limitações - pela qualidade de vida dessas pessoas de nosso país,
obrigadas a se submeter a situações desumanas, como passar 16 horas em uma fila
para fazer um recadastramento biométrico.
A
culpa não é só do governo, não. A culpa dessa situação é de todos nós que nos
omitimos diante de situações como essa, que fechamos nossos olhos para tantas
coisas e não nos preocupamos porque elas não nos atingem. Imagino o que sejam
as filas dos hospitais públicos... Aliás, nem sou capaz de imaginar. O
recadastramento é uma vez só. As filas do dia a dia se repetem. A dificuldade
para se ter o que é básico se repete, assim como se repetem os privilégios.
Quando
a pessoa da senha 102 saiu da sala, acompanhada por um funcionário, foi
aplaudida fortemente, aos gritos de “muito bem”. Senti vergonha por ela. Não
sei se ela tinha dimensão do que significava ela ter entrado ali, bem
alimentada, descansada e perfumada. Imagino que não.
Saí
de lá, no carro da minha filha, já tinha dado 22:00h. As pessoas que ainda
esperavam atendimento, combinavam umas com as outras de saírem juntas pois,
naquele horário, não tinha mais ônibus que passava por perto e teriam que
caminhar até a avenida Paralela para pegar o ônibus que as levasse a alguma
outra estação para que conseguissem chegar em casa. Eu até ofereci carona para
a moça que estava perto de mim, mas ela não aceitou, já que um rapaz havia se
disponibilizado a caminhar com ela até o ponto. Junto comigo levei cada
história, cada reclamação e cada sorriso.
Ao
deitar na cama, depois de tomar meu banho, fiquei pensando naquelas pessoas
todas... Onde estariam? Teriam conseguido o ônibus para casa? (depois de
meia-noite os ônibus diminuem bastante) Teriam chegado a salvo ? Nossa cidade
já está perigosa de dia, quanto mais na madrugada...
Fui
dormir triste e incomodada. Profundamente incomodada. Coração
inquieto. Indignada. Assustada com nossa apatia. Nós, que não temos essas filas
como parte de nossas rotinas, continuaremos de olhos fechados para essa
realidade? Nós continuaremos nos beneficiando de amizades que pegam a senha por
nós, marcam a consulta para nós? E a
maioria da populaçãopermanecerá nas filas para fazer biometria, para agendar
uma consulta, para matricular seus filhos...
“Que
tenhamos coragem de fazer diferente
onde tudo é igual,
Que sejamos agentes, construindo a mudança
bem no mundo real.”
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