segunda-feira, 24 de dezembro de 2018

quarta-feira, 12 de dezembro de 2018

Conversando com o Menino Jesus





Dezembro sempre traz com ele, o rito de passagem mais amplamente vivido pela humanidade. Fecha-se um ciclo. É tempo de revisar os feitos, revisitar planos, rever estratégias, repensar decisões, refletir sobre atitudes e omissões, contabilizar os ganhos e as perdas e analisar o saldo que o ano deixa. Sendo o Natal comemorado justamente nesse tempo, ele nos move a abrir o novo ciclo que se desponta a nossa frente com esperança. Essa é a palavra: esperança! Ganhamos forças para retomar nosso compromisso com a missão que nos foi confiada por Deus porque Jesus nasceu criança e nos convida a ser criança também!

2018 não foi um ano fácil... Mais um ano que não foi fácil! Crianças e jovens foram, novamente, vítimas da violência desenfreada, corrupção teimosamente crescente, escolas mais vazias e hospitais mais cheios. Mais pessoas desempregadas e muitas delas vivendo abaixo da linha de pobreza. Mais guerras, mais refugiados, mais “pecados sociais”. Além de tudo isso, vivemos uma crise tão grave quanto à econômica (ou mais): a crise das relações afetivas. Sob holofotes, vimos nossa incapacidade de respeitar o outro. Vivemos desentendimentos e nos deparamos com nossa dificuldade de dialogar, praticar empatia, ser flexíveis, respeitar e amar quem pensa, sente e vive diferente de nós. De repente, ficamos cara a cara com nossa pequenez e nos demos conta do quão frágeis e vulneráveis somos. Olhando para nosso eu mais íntimo, vimos que ainda estamos muito distantes de viver como Você, Menino Jesus, quis nos ensinar.

Ah, meu  Menino, não desiste de nós !

Fico imaginando que, nos dias de hoje, Você estivesse esperando para nascer nos barcos clandestinos que cruzam o Mediterrâneo, nas fronteiras dos países em guerra ou nas calçadas de nossas cidades.... É absurdamente crescente o número de moradores de rua em nossas cidades... Ou então, Imagino Maria grávida, caminhando pelas ruas das comunidades cariocas tentando escapar das balas perdidas, quem sabe ainda, buscando água num açude distante do sertão nordestino, em alguma cidadezinha quem nem aparece no mapa, como era Nazaré. E nós nem nos importamos com Você...

Temos ficado tempo demais com os olhos no celular, com a cabeça em nossos problemas pessoais e não temos conseguido ir ao Seu encontro. Ao contrário dos Magos e dos pastores, estamos trancados em nossos condomínios, presos em nossos compromissos e não percebemos o brilho da estrela.

De novo, pedimos: não desiste de nós, Menino Jesus!

Dá a cada um de nós, uma nova chance de sermos pessoas melhores. Ensina-nos a olhar para o Alto e compreender Seus Sinais. Inspira-nos a nos desapegar do que temos de mais precioso para entregar-Lhe, voltando por caminhos diferentes para vivermos uma vida diferenciada.

Coloca-nos de frente com Maria e José para que aprendamos a simplicidade de suas atitudes, a profundidade de suas escolhas e absorvamos a coragem de dizer sim e de nos colocar disponíveis à vontade do Pai. Jesus, Você que nasce nas diversas manjedouras espalhadas pelos cantos mais esquecidos do nosso planeta, vem nascer também em nossos corações!

Nasce em nós, Jesus, Menino de Nazaré, e resgata o que temos de mais bonito, garimpa tesouros em nós, transforma nossos espinhos, cada pedra e nossas dores em aprendizado. Adoça nossas amarguras e não deixe, jamais, que a esperança pereça em nossos corações.

Nasce em nós, Jesus Menino, escancara aos nossos olhos, nossa fragilidade e derrama bênçãos e forças sobre as nossas vidas. Que Sua força seja a nossa força e que, assim, continuemos nos indignando com as injustiças, movimentando-nos na direção de quem mais precisa e nos incomodando com os gritos e os silêncios de nossa sociedade. Inquieta-nos, diariamente, com a vontade insaciável de natalizar os corações, as pessoas e todo o mundo. Por que não?

Que seja Natal em nós para que vivamos a experiência do Natal verdadeiro entre nós ! Que nossos corações -manjedouras estejam abertos para acolhê-Lo. Que sejamos pessoas melhores a partir dessa experiência de Amor que se renova todos os anos. Que ela nos renove todos os dias e que mantenhamos nossos corações atentos para que nossos olhos não se desviem nem do brilho da estrela nem do brilho de cada olhar.

Que assim seja!

Amém !                                                               

 Renata Villela  -  Dezembro 2018

quarta-feira, 3 de outubro de 2018

Política e comportamento





Eu entendo e acolho a divergência política - isso é democracia.
Eu entendo e acolho os que são a favor da privatização das estatais, assim como os que são contra, porque isso significa percepções diferentes sobre a política econômica do país. Isso também é democracia.
Eu entendo e acolho os que são neoliberais e que veem no "mercado" a saída de muitos problemas, assim como entendo e acolho os que colocam a prioridade no desenvolvimento social e temem pelo capitalismo selvagem. Essa também é uma divergência que se discute num país democrático.
Eu entendo e acolho a contrariedade do povo em relação à corrupção que tomou conta da política em nosso país e entenderia que essa contrariedade levasse à indignação que gerasse um movimento crítico diante de nossos problemas. O que não consigo entender é depositar em um único partido toda culpa dos erros que todos cometeram, como se os políticos de todos os outros partidos fossem pessoas do bem.
Eu entendo e acolho que todos estejamos cansados de tanta violência, da nossa vulnerabilidade num país onde a lei só vale para uns, mas não consigo entender nem aceitar que se pense que o armamento e a incitação à violência sejam colocados como solução.
Eu entendo e acolho a indignação das pessoas em relação às questões morais, à banalização do respeito ao outro, entendo que pessoas tenham valores e comportamentos diferentes. Uma coisa que até agora eu não consegui entender é o fato de se estar delegando ao presidente da república atitudes que cabem às pessoas, às famílias e à sociedade. Respeitar o outro, aceitar as diferenças, respeitar cada crença, saber se comportar socialmente e outras tantas coisas são valores e ensinamentos que cabem a cada um de nós, não ao presidente do país. A esse, cabe direcionar o desenvolvimento socio-economico do país, implementar melhorias na educação e na saúde, rever a questão dos impostos e colocar pra rodar a reforma política que tanto ansiamos.
Enquanto estivermos na dicotomia do Salvador da Pátria x a Geni, endeuzando ou jogando pedras, só estaremos destruindo a nós mesmos.
E, pra concluir, eu acho que todo radicalismo e generalização são burros.
Tenho amigos homossexuais que são pessoas maravilhosas e têm comportamentos muito mais íntegros do que muitos héteros. Muheres que se posicionam politicamente e que vão às ruas não podem ser taxadas de vagabundas e promíscuas.  Quem mora nas favelas não é, necessariamente, marginal. Em todas as classes sociais, religiões, gêneros, ideologias há pessoas boas e pessoas não tão boas. Nós todos erramos e acertamos. Isso é inerente à vida e escolher caminhos cabe a cada um de nos, não ao presidente.
 Não acredito em super heróis nem em quem se entitula defensor da moral. Todos os que, de fato, lutaram e lutam pelo bem comum, o fizeram e fazem sem fazer barulho.
Eu acredito que somos nós os responsáveis  por fazer desse mundo que vivemos,ummundo  mais saudável.

quinta-feira, 15 de março de 2018

Marielle, presente !




Quando no meio da lama política
e do caos social;
no meio das guerras do tráfico
e do abuso policial,
uma voz se levanta
alertando sobre o que é ilegal (ou imoral)
é sinal de que alguém sobrepôs-se ao perigo
e assumiu – com fervor – seu papel.

Na favela,muitas vozes se calam
diante da realidade imposta
e da luta desgastada
pela sobrevivência...

Na favela, poucas vozes ousam gritar
e as que gritam se expõem
e as que se expõem, arriscam-se.
Abalam estruturas consolidadas, sim,
mas, infelizmente,
 são surpreendidas pelo fim da história
antes do último capítulo.

Marielle, negra e mulher,
Voz de Acari e da Maré,
assumiu para si a dor
e o grito sufocado
de tantas minorias.

Ironia?
Agonia...Selvageria...Covardia...
Executaram Marielle
de forma brutal, de um jeito cruel.
Mataram Anderson, pai de família,
mais um trabalhador que morre
no exercício de sua profissão.
Marielle, mais uma mulher que perde a vida,
mais uma negra que aumenta a estatística
da violência em nosso país...
Triste país, órfão de seus filhos.

Executaram Marielle
mas não calarão a voz que denunciava 
o que outros temiam falar, tanto mal....
Nem tampouco pararão a luta dos que acreditam
em uma sociedade mais justa e igual.

Marielle, antes vereadora de uma única cidade
torna-se embaixadora do povo de todos os lugares,
rompendo fronteiras e nacionalidades.
Marielle, socióloga que transformou estudos acadêmicos em ação
passa a marcar com seu sangue a história desse país sem direção.
País que agoniza
porque não prioriza a vida
sob nenhuma perspectiva,
em nenhuma situação.

Uma voz que se cala
na vala da morte mais cruel.
Não! Não se calará!
Mais um tiro,
Tantos tiros,
mais dois corpos jogados ao chão...

Os que tentaram calar Marielle
esqueceram que a voz que ela gritava não era só dela,
vinha dos moradores de todas as favelas
e de todos os bairros nobres (por que não?)
Vinha de todas as pessoas cansadas da violência
e de tanta impunidade
da leviandade
e de tanta distorção de valores.

Aos que tentam comparar a morte da Marielle
com tantas outras que acontecem todos os dias
eu só digo que morte não se compara,
que a dor que a violência causa
em que circunstância for
abre escaras profundas em todo e qualquer coração.

A morte de Marielle, entretanto,
é mais que uma vida a menos:
é tentativa hipócrita de de calar a voz
de quem não abaixou a cabeça.

A morte de Marielle
reune em si todas as mortes que ficaram impunes
e foram esquecidas;
reune em si todas as vozes que ficaram caladas
e todas as dores que não foram tratadas.
A morte de Marielle dá nome
a todas as vítimas anônimas
e a todas as famílias enlutadas.

Em paralelo,
enquanto  a morte de Marielle acorda
toda coragem adormecida
de um povo desacreditado no amanhã,
a vida de Marielle instiga 
e inspira cada um de nós
a também soltar nossa voz,
assumir nosso papel
e cumprir nossa missão.

Marielle, presente!
Sua luta não foi em vão.

sábado, 13 de janeiro de 2018

Experiências inusitadas, percepções ampliadas, coração inquieto (Sobre passar 15 horas na fila para recadastramento biométrico)

                                                                        
   
Tudo poderia ter sido diferente se eu não fosse uma pessoa tão exigente comigo mesma... Ou, por outro lado, se eu fosse mais atenta aos prazos (deixei para me preocupar com a biometria já em novembro)... Perdi o agendamento que havia feito por estar viajando a trabalho e, não querendo correr o risco de ter o título cancelado, encarei o desafio das super filas, mesmo com alguns amigos dizendo que era maluquice e que haveria condições de fazer depois do dia 31 de janeiro, data colocada como limite.
Preocupada comigo devido aos problemas de saúde que me acompanham, minha filha se propôs a madrugar na fila para que eu chegasse um pouco mais tarde. Assim fez! Às 5:30h da madrugada lá estava ela tentando uma senha para mim. Ficou na fila de espera, visto que as primeiras senhas haviam sido entregues às pessoas que não conseguiram atendimento no dia anterior. Cheguei às 8:00h, esbaforida,  pois chamaram pessoas da fila de espera onde ela estava e a possibilidade de perder a vez era algo inimaginável para mim.  Saí de casa preparada para a empreitada que via nas reportagens da TV: filas imensas sob sol e chuva. Eu sabia que dificilmente daria conta daquilo, mas estava disposta a tentar.
Estava preparada para algo tão ruim que fui surpreendida positivamente ao ver que no lugar do sol e da chuva, havia cadeiras arrumadinhas no saguão de entrada da Assembleia Legislativa. Mais do que isso: havia várias térmicas de café e garrafas de água mineral à disposição das pessoas. Confesso que fiquei positivamente surpresa. Por pior que fosse a perspectiva de espera, esse cuidado com as pessoas por parte dos funcionários daquele lugar (infelizmente anormal nas instituições públicas de nosso país) me chamou atenção. Talvez tenha me ajudado a ter as forças para continuar ali, mesmo passadas três horas e ter recebido a notícia de que somente 28 pessoas haviam sido atendidas (14 da fila normal e 14 prioridades).
Era quase meio-dia quando um segurança chegou no lugar onde estávamos, informando-nos que anotariam nossos nomes e números de RG para que fôssemos prioridade no dia seguinte, visto que não poderiam mais garantir atendimento. Quem quisesse arriscar, arriscasse, mas seria sem garantias. O que faz uma pessoa nessa circunstância? Com a manhã de trabalho já perdida, arrisca a tarde, mesmo com toda lentidão do sistema? Nessas horas, as dúvidas se multiplicam, as interrogações parecem pulsar na cabeça e aquela culpa por ter deixado o recadastramento para os últimos meses fica ali atormentando. Sem saber que decisão tomar, fui deixando o tempo passar. Nesse tempo, algumas pessoas desistiram, outras persistiram. E eu ali, pagando pra ver até onde minhas forças iriam. Durante toda manhã, minha filha estava ali, fiel escudeira a me dar força. Comprou lanchinho na lanchonete, cuidando de mim. Privilégio, o meu! Na hora do almoço precisou sair para resolver uns compromissos. Logo depois que ela saiu, o mesmo segurança aproximou-se novamente do grupo dos persistentes e falou: “garanto a vocês que farei o possível para que consigam ser atendidos”. Uma das pessoas que estava na fila brincou dizendo: “é bom pra gente e menos trabalho pra você, né?”. Naquela hora o rapaz parou e, com os olhos lacrimejando, falou para nós: “Para mim não muda nada, o trabalho é o mesmo. Vou fazer de tudo porque me coloco no lugar de vocês e fico muito feliz quando conseguimos fazer com que o esforço e o desgaste de vocês seja recompensado.” Os olhos marejados e a verdade das palavras daquele segurança me deram duas certezas:
1.    Eu deveria ficar;
2.    Eu aprenderia muito com a experiência daquele dia
Decidida a ficar, logo depois fomos chamados a fazer nosso cadastro para receber nossas senhas. Minha senha? 115. Às 13:00h, as senhas que estavam sendo atendidas eram a 28 para fila normal e prioridade. A primeira pergunta que eu fiz ao segurança da nova sala e à recepcionista foi: “vocês garantem que seremos todos atendidos?” Quando a resposta veio positivamente, senti aquela alegria por ter tomado a decisão certa de ficar e arriscar. Eu não tinha ideia do que ainda viria pela frente,  mas alguma coisa me dizia que eu não estava ali por acaso.
Não adiantava ficar olhando para o relógio. Como pessoa de Ciências Humanas, troquei a olhadela frequente no celular pelo olhar, escuta e observação do que estava acontecendo a minha volta. E saí ganhando! Tenho certeza de que, por mais que o dia tenha sido pesado e muito cansativo, foi também uma experiência valiosa. Algo genético, herdado de minha avó e de minha mãe, não me deixou nem sequer abrir o livro que eu tinha nas mãos. Logo eu já estava conversando com o povo, dando risada e aprendendo com a sabedoria de cada um.
As conversas começaram sobre os mais diferentes assuntos. As redes de relacionamento foram se formando. Um contava uma história e os outros comentavam. Alguém contava uma piada e todos riam. Uma pessoa se aborrecia e quem estava em volta intervia. Um recorte da nossa sociedade ali, naquela fila gigante, naquela espera sem fim...
Sentadas naquele corredorzão, pessoas de diferentes culturas, classes sociais, profissões, idades e expectativas. Sentadas naquele corredorzão, pessoas completamente diferentes, igualadas, cada vez mais, no cansaço, na fome, na indignação. Se por um lado todos nós sabíamos que o recadastramento estava aberto por mais de 10 meses e que deixamos para os últimos meses (daí nossa parcela de responsabilidade em ter que enfrentar fila), por outro lado, nada justificava – em pleno século XXI – com a tecnologia que temos, pessoas passarem horas e horas para fazerem um processo simples de biometria.Cá entre nós, mais um exemplo de desrespeito do governo em relação ao povo. Sacrifício desnecessário tanto para o povo quanto para os profissionais que vem trabalhando horas a fio, exaustivamente.
 Os diálogos transitavam entre os papos sobre o cotidiano e a indignação. De um modo geral, não havia revolta. Ainda que todos estivessem aborrecidos com a situação, havia um tom de respeito -por parte dos funcionários que nos atendiam - que trazia certa acolhida: os garrafões de água e as térmicas de café sendo trocados periodicamente, banheiros sempre limpos, funcionários tratando as pessoas com educação e respeito. Até livros recebemos, publicações patrocinadas pela ALBA que um funcionário distribuiu para nos ajudar a passar um tempo com a leitura de autores baianos.
Olhar para aquelas pessoas dava um nó em meu peito. Ali de meu lado, minha filha indo e vindo, me trazendo lanche, fazendo companhia. As pessoas mais próximas comentavam comigo como era bom ter filhos que cuidavam dos pais. A presença dela fez com que um dos temas das conversas fosse a importância da família. Enquanto as pessoas falavam de seus pais, de seus filhos, suas faces se transformavam, os olhos brilhavam. Isso servia como combustível. Interessante foi pensar que despertamos coisas boas nas pessoas com nossas atitudes: a presença de minha filha ali fez com que cada um pudesse falar um pouco de sua família e, para quem acha que família não é mais um “valor”, pude constatar que é sim !
De vez em quando, um evento movimentava o ambiente e aquele amontoado de pessoas  ia se transformando num grupo, por mais estranho que isso possa parecer a primeira vista. Era só chegar um funcionário com crachá no peito acompanhado por uma ou duas pessoas com cara de banho tomado e estômago cheio que logo dois ou três se levantavam de seus lugares e seguiam determinados em direção a porta da sala onde o recadastramento estava acontecendo. Auto-entitularam-se : “fiscais das senhas”.  Num primeiro olhar, era engraçado ver a cena se repetir. Um olhar mais apurado via o quanto aquela cena era carregada de significado. A atuação dos “representantes” foi imediatamente validada por todos e, quando um estranho se aproximava, alguém gritava de um canto: “fiscais, venham pra porta”. E eles vinham. Confesso que, durante a tarde, não vi ninguém conseguir entrar. A demora no andamento da chamada das senhas fez muita gente dizer que estavam entrando por outra porta. Não posso dizer o que não vi. O que vi foi, mais de uma vez, alguém querer furar fila e não conseguir, “barrado” pela força do povo junto. Vi também, mais de uma vez, o segurança perguntar a quem era o primeiro da fila a que horas tinha chegado e, ao ouvir dessa pessoa que ela havia chegado às 4:00h da madrugada, o próprio funcionário da assembleia e a pessoa desistirem de entrar, por respeito ao sacrifício dos que ali estavam. Assim, as horas foram se passando. Uma professora recebeu o apelido de “delegada” por ficar lembrando o direito dos que estavam ali. Um rapaz de boné desconfiava até da sombra e, vez por outra, abria um pedacinho da porta para ver como as coisas estavam se passado dentro da sala da biometria. Ao sair, falava alto: “tudo certo, minha gente”. Ao mesmo tempo que eu ria, eu me emocionava.
Quando a noite chegou trouxe com ela os rostos abatidos pelo cansaço, a fome tirando a graça e a falta de paciência e tolerância. O sistema melhorou e as pessoas começaram a ser chamadas mais rapidamente, fazendo o contraponto da baixa de energia. Quando o limite parecia chegar, os ânimos se reavivavam, um tema novo na conversa, uma criança correndo pelo corredor (sim, elas estavam lá desde a madrugada também, já que algumas mães não tinham com quem deixa-las). Quanto mais rápido as senhas eram chamadas, uma vida nova parecia ganhar lugar. Os ponteiros do relógio também pareciam rodar mais rápido... 20:00h, 21:00h.... Tudo caminhava bem até que, ao chamar a senha 102, aparece uma pessoa de banho tomado, arrumada, cheirosa,maquiada até. Parecia que uma bomba atômica havia caído sobre aqueles corpos suados, cansados, famintos. Todos se levantaram sentindo-se traídos e feridos no mais profundo de suas almas. O segurança repetia que a pessoa estava com a senha e o povo gritava que tinham clonado uma senha, que aquilo era privilégio. Não houve xingamentos nem violência, mas muita revolta. Houve explicações por parte de funcionários da AL e, ao que tudo indica, algum funcionário pegou a senha cedinho, guardou e, quando estava mais perto do horário de atendimento, ligou, avisando as pessoas para irem. Elas foram. Muito provavelmente sem nenhuma noção do que se passava com as pessoas que estavam naquele corredor, muitas delas desde às 5:00h da madrugada. Diante daquela revolta e do que eu senti estando ali – também me senti desrespeitada – parei para pensar que qualquer um de nós poderia estar na situação daquelas pessoas. Quem não já usou de conhecimento para facilitar um serviço, sem a mínima noção do mal que estava fazendo – indiretamente – a tantas pessoas? Quantas vezes já ouvimos (e já perguntamos): “alguém conhece alguém no...... ???” Quantas vezes, por causa desses conhecimentos, já conseguimos marcar uma consulta médica ou um exame bem antes de outros, já tivemos um problema no banco resolvido mais rápido e por ai vai... “Quem não tiver pecado, que atire a primeira pedra”. Pois, naquele momento, eu senti vergonha de fazer parte de um grupo de privilegiados que têm acesso a praticamente todas as coisas de uma forma muito mais fácil.
Eu poderia ter saído na hora do almoço e só voltado perto da hora do atendimento também. Desde cedo, não tive coragem. Não estaria fazendo nada de “errado”, mas não tive coragem de me eximir daquele sacrifício. Não sei explicar, mas foi assim. Sei que muita gente deve estar me chamando de doida ou de idiota, mas minha consciência me fez ficar e sentir na pele o que eu senti. A partir dessa experiência, comecei a rever minhas atitudes, por mais que elas pareçam ser “normais.” A partir de agora, terei mais cuidado ainda com as pessoas. A partir de agora, pensarei mais ainda na diferença entre direito e privilégio, pois direito não tem distinção. A partir de agora, mais do que sempre fiz, lutarei – dentro de minha limitações - pela qualidade de vida dessas pessoas de nosso país, obrigadas a se submeter a situações desumanas, como passar 16 horas em uma fila para fazer um recadastramento biométrico.
A culpa não é só do governo, não. A culpa dessa situação é de todos nós que nos omitimos diante de situações como essa, que fechamos nossos olhos para tantas coisas e não nos preocupamos porque elas não nos atingem. Imagino o que sejam as filas dos hospitais públicos... Aliás, nem sou capaz de imaginar. O recadastramento é uma vez só. As filas do dia a dia se repetem. A dificuldade para se ter o que é básico se repete, assim como se repetem os privilégios.
Quando a pessoa da senha 102 saiu da sala, acompanhada por um funcionário, foi aplaudida fortemente, aos gritos de “muito bem”. Senti vergonha por ela. Não sei se ela tinha dimensão do que significava ela ter entrado ali, bem alimentada, descansada e perfumada. Imagino que não.
Saí de lá, no carro da minha filha, já tinha dado 22:00h. As pessoas que ainda esperavam atendimento, combinavam umas com as outras de saírem juntas pois, naquele horário, não tinha mais ônibus que passava por perto e teriam que caminhar até a avenida Paralela para pegar o ônibus que as levasse a alguma outra estação para que conseguissem chegar em casa. Eu até ofereci carona para a moça que estava perto de mim, mas ela não aceitou, já que um rapaz havia se disponibilizado a caminhar com ela até o ponto. Junto comigo levei cada história, cada reclamação e cada sorriso.
Ao deitar na cama, depois de tomar meu banho, fiquei pensando naquelas pessoas todas... Onde estariam? Teriam conseguido o ônibus para casa? (depois de meia-noite os ônibus diminuem bastante) Teriam chegado a salvo ? Nossa cidade já está perigosa de dia, quanto mais na madrugada...
Fui dormir triste e incomodada. Profundamente incomodada. Coração inquieto. Indignada. Assustada com nossa apatia. Nós, que não temos essas filas como parte de nossas rotinas, continuaremos de olhos fechados para essa realidade? Nós continuaremos nos beneficiando de amizades que pegam a senha por nós, marcam a consulta para nós?  E a maioria da populaçãopermanecerá nas filas para fazer biometria, para agendar uma consulta, para matricular seus filhos...


“Que tenhamos coragem de fazer diferente
  onde tudo é igual,
  Que sejamos agentes, construindo a mudança

            bem no mundo real.”