quinta-feira, 15 de abril de 2021

Luto, amor, silêncios e palavras.... Uma história

 

Quem me conhece sabe que escrever para mim é oração, é terapia, é transbordamento do que sinto... Tenho uma amiga que diz que “falo pelos dedos”.... Nos últimos tempos, ando meio esvaziada e escrito muito pouco mas, hoje, talvez por ter chegado no auge desse vazio, senti necessidade de tentar transformar em palavras tudo o que está misturado aqui dentro: pensamentos, sentimentos, lembranças, silêncios.... Talvez devesse escrever de mim pra mim, mas sinto vontade de partilhar...




Ontem de manhã, acordei sufocada...Uma angústia e uma tristeza sem tamanho tomaram conta de mim e a única coisa que me veio à mente foi sair de casa para olhar o mar... O dia estava bonito... Tomei café, coloquei todos os aparatos dos protocolos da pandemia e sai... Ainda pensei que não ia dar conta, tem um tempo que parei de caminhar (quase dois meses) e “racionalmente” achei que não fosse conseguir chegar no calçadão da praia...Mas uma força me levava...Eu precisava olhar o mar. Devo ter saído de casa por volta das 7:50h... Chegando na orla, descobri um banco na sombra e ali sentei contemplando o mar... As ondas... Duas músicas ressoavam como mantra: “e diz que se o mar  não tivesse a coragem de na praia morrer, o espetáculo das ondas não iria acontecer” e a música-tema da família Villela “nada do que foi será de novo do jeito que já foi um dia, tudo passa, tudo sempre passará...A vida vem em ondas como o mar num indo e vindo infinito”. Voltei para casa devagarzinho, tomei um banho e fui fazer as coisas do dia... Por volta das 10:30h/11:00h, meu irmão tocou o interfone chorando...Não precisava dizer nada....

Nessa hora, não houve protocolo de Covid que impedisse nosso abraço... Daí em diante, não dá para traduzir em palavras mais nada do que sentimos (e estamos sentindo), do que vivemos (e estamos vivendo).... Detalhe: olhando hoje o atestado de óbito, o falecimento foi às 8:37h. Mesmo fisicamente distantes, estávamos conectados! E sempre estaremos!

Só mais uma coisa quero trazer aqui, antes de falar de meu pai. Na noite anterior, Nanda esteve aqui com Rafael e, na hora de se despedir, eu sempre fico na janela olhando eles saírem, ele olha pra cima e dá tchau, boa noite etc. Quando meu pai estava em casa, fazia isso com nós dois. Nessas últimas semanas, era só comigo. Anteontem, entretanto, ele ficou olhando para o céu, dando tchau e boa noite. Nanda falou pra ele: “Rafa, sua avó está na janela, você está olhando pra onde?” e ele respondeu: “estou falando com o bibi, sei que ele vai me ouvir onde ele está”.

 

É isso: conexões...Amor... Comunhão !

 

Sobre ontem à tarde: estar no cemitério e fazer uma oração de frente para um carro fechado foi muito estranho....Tão estranho que, saindo dali, eu e Nanda fomos ver o por-do-sol. Como a Barra estava cheia de gente (e sem máscaras) vimos o por-do-sol do carro mesmo. Saí por segundos só para fotografar aquele momento que ficará eterno em nossos corações.

 


Desde ontem, muita dor, saudade, aperto no peito, lembranças de momentos bons e ruins que passamos juntos.... Eu e Nanda ficamos todo tempo como se montando um quebra-cabeças da história desse cara que, confesso, não tinha noção do quanto era tão querido! Sentimos uma paz enorme por ele ter tido a oportunidade de receber a unção do enfermos na terça à tarde... A certeza de que todos os seus pecados foram perdoados...Nanda disse que, inclusive, durante a unção, ele teve momentos de lucidez e chegou a falar algumas palavras da Ave Maria. Que bom que ele recebeu esse afago de Deus no coração e pôde voar mais leve ! Obrigada, frei William!

 

Meu pai foi um homem com o coração fora do peito, acho que, por isso, estava mais vulnerável às intempéries da vida. Era um artista nato. Curtia moda, foi artesão de bijuterias e tinha algo de adolescente dentro dele que eu não sei explicar.... Com 14 anos, ele perdeu o pai por um infarto fulminante, dor que nunca cicatrizou dentro dele. Às vezes, eu ficava pensando que esse lado adolescente era resquício desse menino que precisou virar adulto antes da hora. E nessa de ficar adulto antes da hora, ele precisou abandonar muitos sonhos para encarar a “selva de pedra”.... Viver de arte? Impossível! Fez faculdade de Direito e nunca pegou o diploma e enveredou pelo ramo de Comércio Exterior, onde chegou a ser gerente Norte Nordeste de uma empresa. Infeliz com o que fazia. Como tinha contrato especial (não era CLT), quando foi demitido com mais de 50 anos, saiu sem nada.... E numa idade que nenhuma empresa o aceitaria por causa da idade + especialização.... Foi nesse momento que ele juntou os cacos que sobraram e virou “sacoleiro”...Ia para Belo Horizonte comprava coisas na feira de lá e trazia para revender em Salvador (de ônibus!).... Alguns anos sobrevivemos assim e foi justamente nesse tempo que resolvemos juntar nossas durezas e nossas dívidas para dar conta de cada dia. Eu, no auge dos meus vinte e poucos anos trabalhando meio turno, Nanda pequenininha, Rodrigo na faculdade e ele. Sobrevivemos! Muito graças à família e aos amigos, sobrevivemos ! Uma história que daria uma novela com vários capítulos entre dramas e comédias e trilha sonora diversa, mas isso, a gente guarda no canto do coração.... O tempo passou, Rodrigo casou, Nanda casou e, ao longo desses 30 anos de convivência diária, passamos de pai e filha, amigos, a mãe e filho....

 

Eu diria que meu pai tinha 5 grandes paixões (cada uma na sua “prateleira”): a fé - (Nossa Senhora de Fátima, Santa Rita de Cássia e Santa Dulce dos Pobres eram “suas amigas mais queridas”) e a oração do terço era uma prática diária -  a família, os amigos, os jovens e as gatas.

 


Sobre a fé: Graças a ele, conheci Irmã Dulce, pude olhá-la nos olhos, sentir a força de Deus que transbordava dela. Tenho certeza de que ela foi a primeira a recebê-lo no Céu. Graças a ele e a insistência durante a minha infância e adolescência de ir às missas nos domingos às 19:00H (na época), conheci o OPA e, depois, o Escalada. O amor incondicional a Jesus Cristo sempre nos uniu e fortaleceu.

 


Sobre a família: a família era TUDO para ele (algumas vezes eu até falava que era mais do que deveria ser), mas como ele tinha o coração fora do peito, amava de uma forma desmensurada. Um de seus “defeitos” era não conseguir controlar bem o que ganhava....Gastava mais do que tinha para dar presentes! Amava presentear! Do mais simples brinco de camelô a coisas mais caras que ele se enrolava pra pagar.... Como o coração dele se enchia de felicidade ao dar um presente!!! E ai da gente se não gostasse.... Se um de nós adoecia, ele adoecia três vezes mais.... Cada conquista nossa, ele queria divulgar aos quatro cantos... Irradiava orgulho da gente! Quando chegava o Carnaval e os sobrinhos do Rio lotavam a casa, ele se transformava... Houve época de termos 15 pessoas em casa! Uma folia ! Farras inesquecíveis que eu não participava diretamente mas era contagiada fortemente. Como a família do Rio: irmãos, sobrinhos, sobrinhos-netos eram importantes para ele (e para nós!). Vínculos que nunca se abalaram ao longo dos anos de distância física...A cada um somos ETERNAMENTE gratos !O sangue Villela faz toda diferença em nosso jeito de ser e viver.

 


Sobre os amigos e os jovens: a mesma forma como se doava à família, fazia com amigos. Ficaram poucos amigos do tempo de faculdade e do tempo que trabalhou no Rio, mas falava com eles com frequência pelo zap. A grande maioria dos seus amigos eram mais jovens que ele e ele sempre comentava que “não tinha papo” com as pessoas da idade dele.... Dessa forma, os meus amigos se tornaram seus amigos... Ganhou muitos sobrinhos queridos, nessa época, que o chamavam carinhosamente de tio Lula: Liana, Aninha, Soan, Claudinha, Mario, Celso, Luciano, Thais, Kite, André.... Muitos nomes para lembrar agora.... A turma do São Paulo, do Despertar e do Semente... Houve quem não entendesse esse carinho e cuidado dele por esses sobrinhos (o que o fez sofrer muito), mas era um cuidado que se eternizou e, nesses últimos dias, esses sobrinhos vinham procurando e rezando por ele com o mesmo amor de antigamente.... Não dá para traduzir em palavras a força desses reencontros agora, como se a vida fechasse um ciclo com a chave do amor. Continuou a fazer sobrinhos quando entrei para o Meridien: até meu gerente o chamava de tio Lula... Glozinha, Marcinha, Beto, Rosana, Vivaldo, Edson.... Também Ademir....A memória agora teima em falhar, mas cada pessoa que foi tão importante nessa grande família que ele criou está aqui guardada em baú de tesouros.... Depois vieram os netos... Ele sempre apaixonado pela juventude: Rogério e Rafael, Leo Lessa, Gustavo, Gazineu, Lucas, Laura, Nanda e Thiago, Cora, Negão, Xande.... De novo, não vou conseguir lembrar aqui os nomes de todos e me perdoem se esqueci alguém especial.... Todos vocês, amigos-irmãos que se tornaram amigos queridos dele (Angela, Marilu, Verinha, Ernani, Marta, Cris, Cacau, Grace, Tine, Silvana, ......................), sobrinhos e netos, junto com a família “de sangue” fazem hoje uma redoma de amor para mim (e acho que posso estender isso para Digo, Nanda, Piui, Sil, Rafa e Saulo e Rafinha) a nos proteger dessa tempestade. Por causa de vocês e de tudo o que ele nos ensinou, apesar de tudo, conseguimos sentir a brisa suave de Deus nos fazendo lembrar o quanto somos amados e o quanto a vida de meu pai valeu a pena.

 


E as gatas? Elas não saem de perto de mim. Ontem ficaram desesperadas, subindo e descendo da cama dele, se escondendo debaixo da cama dele.... Nesse ponto, só quem tem “família de quatro patas” é capaz de entender....

 

Se vocês me perguntarem por quê ou para quê escrevi tudo isso, não vou saber explicar. Eu precisava escrever, da mesma forma que precisava ter ido olhar o mar ontem.... Talvez, eu precise disso para elaborar melhor tudo o que está acontecendo e para ter a certeza de que todos os momentos difíceis passaram e, agora, ficou só amor. Um amor, confesso, nesse momento, regado de muita dor e saudade, de um vazio sem nome e uma “desvontade” de várias coisas.

Meu pai nasceu no dia do Soldado e foi um guerreiro. Lutou por muitos anos, várias batalhas, a maior e mais duradoura delas, entretanto, foi contra a depressão.... Essa, por mais que tentássemos juntos, ele não conseguiu vencer. Mas eu tenho certeza de que agora, não há mais lágrimas, nem dores, nem sofrimento. Só amor. O Amor misericordioso de Deus, o afago terno da Mãe, o abraço de Santa Dulce e o reencontro com todos os que ele tanto amou e que estavam esperando por ele: vovô, vovó, tio Chuca, Alfredinho, Tia Letícia e tio Pedrinho estão, nesse momento, cantando e fazendo a coreografia de “Como uma Onda” lá em cima. Eu acredito nisso!

Nas minhas orações, eu só pedia pelo bem dele...Não conseguia pedir nada diferente e, apesar de estar doendo demais da conta, tenho certeza de que fui atendida. Ele cumpriu a missão dele aqui.

 

Está doendo muito, muito, muito.... Tem horas que dá vontade de chorar sem parar.... São 30 anos de convivência diária.... Vou ter que aprender a viver sem ele... Aliás, sem ele aqui, fisicamente, porque o que de melhor ele deixou, estará comigo sempre. Desde já peço desculpas se não atendo alguma ligação ou não respondo alguma mensagem. Estou lendo tudo, vendo tudo, sentindo tudo. Vocês podem estranhar alguns conseguirem falar comigo e outros não....São momentos e momentos. Estou num tempo de silenciar, mas o carinho e o amor de vocês é FUNDAMENTAL. Preciso muito de cada um. Rompi minha quietude e solidão para escrever essas palavras... De novo, não sei por quê nem para quê, mas me deixei levar e aqui está esse textão para quem quiser ler.

 


No meio de toda essa dor só tenho recebido amor e acabei descobrindo que, além de Villela, ganhamos muitos outros sobrenomes....Almeida, Bispo, Araujo, Vieira, Santana, Pereira, Cunha, Carvalho, Silva, Sales, Campos, Mayer, Aleluia, Pires, Bastos, Santos, Petrovich, Dantas, Vasconcelos, Cruz, Guedes, Salmazo, Gomes ............ 

Que Deus abençoe cada um de vocês e todas as suas famílias !